7 de março de 2023
Tratamento penal das pirâmides financeiras no Superior Tribunal de Justiça: artigo de Victor Barreto publicado no Conjur

Publicado em: Conjur

Link da publicação: https://www.conjur.com.br/2023-mar-07/victor-barreto-tratamento-penal-piramides-financeiras/

Os golpes financeiros aplicados por meio de modelos de negócio fraudulentos caracterizados como “pirâmides financeiras” existem há mais de 100 anos, tendo, como primeiro grande caso, a fraude executada por Charles Ponzi, que, na década de 1920, prometia lucros exorbitantes a investidores com a venda de selos de resposta internacionais nos Estados Unidos, negociados a preços mais elevados que na Europa.

Como os custos de transação — não previstos inicialmente por Ponzi — tornavam o negócio inviável, a rentabilidade dos investidores mais antigos foi custeada pela entrada de novos investidores, até que a imprensa passou a questionar a prática e o Estado interveio, congelando novas captações financeiras, o que levou ao colapso do esquema.

No Brasil, negócios baseados em pirâmides financeiras se tornaram famosos nos anos 1990, com o esquema de engorda de gado nas Fazendas Reunidas Boi Gordo. A empresa garantia lucro mínimo de 42% em um ano e meio, o qual seria auferido pelo investidor por meio da engorda e venda de animais.

Os rendimentos, no entanto, eram pagos, sobretudo, com o capital proveniente dos investidores mais recentes. Quando os saques superaram os investimentos, o negócio ruiu, no início dos anos 2000, deixando uma dívida de 2,5 bilhões de reais e mais de 30 mil lesados [1]. Em 2009, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a prescrição dos crimes — falimentares — pelos quais o dono da Boi Gordo, Paulo Roberto de Andrade, havia sido denunciado, e até hoje as vítimas buscam judicialmente o ressarcimento de seus prejuízos.

Nos anos 2000, os esquemas de pirâmide passaram a se avolumar no país, sob as mais diversas tentativas de dissimulação da prática criminosa. Impulsionadas pela popularização da internet e, mais recentemente, com a disseminação das criptomoedas, empresas como Avestruz Master, Telexfree, BBom, Priples, D9 Clube de Empreendedores, Rental Coins, Vik Traders, entre outras, foram criminalmente acusadas de constituírem pirâmides financeiras, com alguns desses casos já discutidos no âmbito do STJ, o que possibilita a análise do posicionamento da Corte acerca do tema.

Para tanto, selecionou-se acórdãos encontrados na pesquisa de jurisprudência do site do tribunal [2], com a busca pelo termo “pirâmide financeira”. Foram encontrados 13 acórdãos: dois julgados em conflitos de competência; três julgamentos de habeas corpus; sete, de recursos ordinários em habeas corpus; e um de agravo regimental em petição em recurso em mandado de segurança.

As decisões discutiram os seguintes aspectos: adequação típica da conduta; definição de competência; distinções entre a prática delituosa de pirâmide financeira e a atividade legal de marketing multinível; circunstâncias que diferenciam as pirâmides financeiras do delito de estelionato; e a operação de pirâmides financeiras com o uso de criptomoedas. Vale registrar que a mesma pesquisa foi feita no buscador de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que não apresentou registros de decisões colegiadas.

Aplicado este filtro de pesquisa, o mais antigo acórdão registrado, de 13 de fevereiro de 2015, foi proferido no Habeas Corpus (HC) 293.052/SP, no qual a Quinta Turma do STJ discutiu a competência para o processamento do caso BBom, em que as empresas Embrasystem e BBrasil são acusadas de operar uma pirâmide financeira sob o disfarce de marketing multinível, com a comercialização de rastreadores de veículos. Na hipótese do Ministério Público Federal, a BBom seria instituição financeira para fins penais e teria celebrado contratos de investimento coletivo, que dependem de registro prévio perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

A Corte, no entanto, considerou que a conduta das investigadas — que concediam bonificações às supostas vítimas unicamente pela indicação de novos associados — não consistia em captação ou gestão ilegal de recursos financeiros de terceiros, não se enquadrando, portanto, na definição jurídica do artigo 1º da Lei 7.492/86 (que define os crimes contra o sistema financeiro nacional), assim como não acarretou prejuízo a bens, interesses ou serviços da União, o que afasta a competência da Justiça Federal.

Ao fim, a Turma declarou que “o eventual dano causado a particulares pode ser tipificado como delito contra a economia popular, quiçá estelionato, de competência da Justiça Estadual” — entendimento reforçado no julgamento do Recurso em Habeas Corpus (RHC) 111.187/SP, pela mesma Turma, sob a relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.

Já no RHC 55.173/ES, a Sexta Turma identificou indícios de esquema de pirâmide financeira na operação de empresas sob o nome fantasia Start Motos — que oferecia a aquisição de motocicletas na sistemática conhecida como “compra premiada”, dissimulando uma operação de consórcio, sem a necessária autorização do Banco Central.

Ao também verificar, contudo, “a existência de captação e administração de recursos de terceiros”, considerados “elementos suficientes para o preenchimento do conceito de instituição financeira por equiparação previsto no artigo 1º, p. único, I, da Lei nº 7.492/86”, a Turma firmou a competência da Justiça Federal para a supervisão das investigações, com fundamento na Súmula 122 do STJ [3].

No RHC 53.750/ES, por sua vez, analisou-se pedido de trancamento do inquérito policial que investigava a prática de pirâmide financeira pela empresa Ympactus Comercial SA — Telexfree, a qual teria captado dinheiro mediante investimento dos divulgadores da companhia, com promessas de rendimentos elevados que seriam pagos com recursos de investidores mais recentes no negócio.

A Sexta Turma considerou, no caso, que manifestações do Banco Central e da CVM de que as atividades da investigada não correspondiam a contratos de investimento coletivo ou outra atividade dependente de autorização da segunda autarquia não eram suficientes para determinar a competência para a supervisão do inquérito, pois o aprofundamento das investigações demonstrou a presença de indícios da prática dos crimes previstos nos artigos 7º, II, 16 e 22 da Lei 7.492/86, atraindo, em razão da conexão, a competência da Justiça Federal.

No Conflito de competência (CC) 146.153/SP, a Terceira Seção definiu a jurisdição que deveria conduzir o inquérito policial instaurado para apurar crimes de pirâmide financeira e de lavagem de dinheiro atribuídos às empresas Akatus Meios de Pagamento S.A., Pagsuporte, cobrança e Intermediação de Negócios Ltda. e Winner Manager.

Conforme o acórdão, as empresas investigadas ofereciam, sob a máscara de marketing multinível, planos que prometiam “ganhos semanais, mensais e anuais pela aquisição de estações de testes de jogos on-line, além de ganhos extras pela indicação de novos associados e pela formação de uma rede de associados que trabalhe em equipe”, com pouca ou nenhuma informação sobre a empresa, vaga descrição do produto e fluxo de renda dependente do recrutamento de novos associados, com “promessas de ganhos potencialmente incompatíveis com a realidade e com o capital social da empresa”.

A decisão apresenta conceitos de pirâmide financeira e marketing multinível, diferenciando as práticas e enfatizando a legalidade da segunda:

A “pirâmide financeira” caracteriza-se por oferecer a seus associados uma perspectiva de lucros, remuneração e benefícios futuros cujo pagamento depende do ingresso de novos investidores. Contudo, como, a partir de um determinado momento, mostra-se inviável manter o ingresso de novos investidores em proporção suficiente para que suas novas contribuições arquem com os lucros prometidos àqueles que ingressaram previamente no esquema, o sistema não tem como se alimentar de recursos e entra em colapso, prejudicando aqueles que aderiram por último, uma vez que não chegam a recuperar nem mesmo o montante investido.  

Já o sistema de “marketing multinível” constitui um legítimo sistema de distribuição de produtos e/ou serviços por meio de contratados independentes que recebem sua remuneração seja por meio de percentual sobre o valor das revendas diretamente ao consumidor, seja por meio de percentual sobre as revendas efetuadas pelo grupo ou rede por eles previamente recrutados.

Ao final do julgamento, a 3ª Seção reforçou o posicionamento da Corte de que a captação de recursos decorrente de pirâmide financeira não se enquadra no conceito de atividade financeira para fins da incidência da Lei 7.492/1986, “amoldando-se mais ao delito previsto no artigo 2º, IX, da Lei 1.521/1951”. E, ao não encontrar dados indicando que a lavagem de dinheiro imputada teria sido praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, ou mesmo que o delito seria conexo com qualquer outro crime de competência da Justiça Federal, concluiu pela competência da Justiça Estadual para dar continuidade às investigações.

Em análise a respeito das atividades da empresa Priples, acusada de prometer, por meio de chamamento genérico, na internet, rentabilidade diária de 2% sobre o capital investido, além de remuneração correspondente a 40% do investimento para o ingressante indicado por outro investidor, a Sexta Turma enumerou, no HC 464.608/PE, circunstâncias que diferenciam os crimes de pirâmide financeira e de estelionato.

De acordo com a decisão, distingue-se o estelionato (artigo 171 do Código Penal) do crime de ganhos fraudulentos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas (artigo 2º, IX, da Lei 1.521/51) — no qual são incluídas as pirâmides financeiras — pelo direcionamento a vítimas determinadas ou indeterminadas.

Como, na investigação, verificou-se “o direcionamento genérico da captação de clientes vitimados, em número indeterminado de vítimas, escapando da caracterização do tipo penal do estelionato, que exige vítimas específicas”, os ministros consideraram que os fatos descritos configuram crime contra a economia popular, destacando, ainda, que a identificação de algumas vítimas não é suficiente para afastar a captação genérica de atingidos.

O primeiro acórdão encontrado sobre pirâmides financeiras com o uso de criptomoedas se deu no âmbito do CC 170.392/SP, no qual a Terceira Seção definiu a jurisdição competente para apreciar a acusação contra a empresa Xgocoin, que oferecia, mediante o investimento em criptomoedas, lucro mensal de 55% sobre o valor aplicado, mas teria parado de responder a contatos e se apropriado do dinheiro dos investidores.

No caso, em que novamente se discutiu a existência de crime contra o sistema financeiro nacional, a Corte reafirmou que a negociação de criptomoedas, que não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio — pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela CVM — por si só, não caracteriza “os crimes tipificados nos artigos 7º, II, e 11 da Lei 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no artigo 27-E da Lei nº 6.385/1976 (CC 161.123/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, DJe 5/12/2018)”.

Além disso, asseverando o entendimento de que a captação de recursos decorrente de pirâmide financeira não se enquadra no conceito de atividade financeira para fins da incidência da Lei 7.492/1986, amoldando-se mais ao tipo penal previsto no artigo 2º, IX, da Lei 1.521/1951 — crime contra a economia popular, a Corte declarou a competência da Justiça Estadual para o julgamento do feito, ante a ausência de conduta praticada em prejuízo da União.

O STJ voltou a debater as diferenças entre o crime de pirâmide financeira e o de estelionato no RHC 132.655/RS, processo no âmbito da Operação Faraó, em que a empresa D9 Clube de Empreendedores é acusada de operar pirâmide financeira sob a aparência de trading esportivo, “obtendo os ganhos ilícitos através do produto da especulação dos recursos aportados por quem investisse no esquema mesmo sem saber tratar-se de pirâmide financeira”.

No acórdão, a 6ª Turma reiterou a compreensão de que “nas hipóteses de crime contra a economia popular por pirâmide financeira, a identificação de algumas das vítimas não enseja a responsabilização penal do agente pela prática de estelionato”, firmada no HC 464.608/PE, e, ao verificar que a descrição das circunstâncias fáticas para a acusação de pirâmide financeira e de estelionato eram semelhantes, determinou o trancamento do processo, por bis in idem, em relação às acusações de estelionato.

O mais recente acórdão do STJ, encontrado na pesquisa, tratando de pirâmides financeiras, também se debruçou sobre a diferença entre o referido delito contra a economia popular e o crime de estelionato.

O RHC 161.635/DF envolveu a empresa Vik Traders, acusada de operar uma pirâmide financeira sob a roupagem de investimentos em uma plataforma internacional de arbitragem de criptomoedas, de forma automatizada, com o uso de robôs que extrairiam do mercado um suposto melhor retorno possível.

No julgamento do recurso, a 6ª Turma considerou que “a pirâmide financeira ou a criação de site na internet sob o falso pretexto de investimento em criptomoedas subsume ao delito do artigo 2º, IX, da Lei 1.521/1951”, e, na linha do que já vem decidindo o Tribunal, afirmou que em casos de prejuízos genéricos, “sem verificação de conduta transcendente, mas mera cooptação pelo site eletrônico, ainda que possível identificar algumas vítimas, verifica-se apenas o crime contra a economia popular”.

Por outro lado, a Turma observou que, em alguns dos fatos discutidos, além do ato voltado à angariação de vítimas entre o público geral, pela oferta na internet, houve “aliciamento particularizado, mediante induzimento e convencimento, de vítimas determinadas, através de emissários dos agentes criminosos principais”, circunstâncias capazes de caracterizar concurso de crimes entre o delito contra a economia popular e o estelionato. Nessas situações, destacou a Corte, a “adesão ao site (instrumento para a fraude) se revela apenas como exaurimento do estelionato”.

Os julgamentos dos RHCs 48.914/MG e 153.528/SP, bem como do Agravo Regimental em Petição no Recurso em Mandado de Segurança 47.155/SP, não se debruçaram sobre o objeto do artigo, apreciando, de maneira mais detida, outras questões transversais referentes a processos que tratam a respeito de pirâmides financeiras — tema que ainda desafiará bastante a Corte Cidadã, tendo em vista os inúmeros casos recentes que estão sendo processados nas instâncias ordinárias.


[1] Friedlander, David. Criador da Boi Gordo, que lesou mais de 30 mil, se livra da prisão. O Estado de São Paulo, 13/08/2009, Economia, p. B16. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/341063/noticia.htm?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 26 fev. 2023.

[2] Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em 25 fev. 2023.

[3] Súmula 122 do STJ: Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do artigo 78, II, a, do   Código de Processo Penal.