Publicado em: ConJur
Site da Publicação: https://www.conjur.com.br/2021-jan-31/opiniao-banalizacao-conceito-organizacao-criminosa
No Direito Penal, a norma que define um crime e comina uma pena deve ser sempre interpretada de forma precisa e restritiva, em razão do princípio da legalidade estrita ou da reserva legal (nullum crimen sine lege), que constitui uma das bases do Estado democrático de Direito. O referido princípio não configura mera formalidade a ser observada pelos agentes políticos, mas, sim, um verdadeiro instrumento para a efetivação da vontade popular, traduzida no conteúdo promulgado pelo legislador.
Claus Roxin afirma que “uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara, não pode proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do ius puniendi estatal ao qual se possa recorrer”. Isto é, a lex certa, o tipo penal preciso, taxativo, funciona tanto como mecanismo de limitação de abusos no âmbito legislativo quanto como ferramenta de contenção do arbítrio estatal.
A legislação penal brasileira, contudo, está repleta de tipos penais que utilizam termos vagos, que deixam grande margem interpretativa ao arbítrio do julgador. Alguns exemplos práticos podem ser verificados na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983); na lei que define os crimes contra o sistema financeiro (Lei nº 7.492/1986); na Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.260/2016) e em tantas outras, o que gera considerável insegurança jurídica e sujeita o cidadão a certo ativismo judicial.
A Lei nº 12.850/2013, que define o conceito de organização criminosa, não se apresenta como exceção, ou seja, também possui termos vagos que, pela sua imprecisão, acabam dando margem a aplicações equivocadas ou abrangentes demais.
Vejamos o que diz o artigo 1º, parágrafo 1º, da referida lei:
“Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.
Por sua vez, o artigo 2º determina que “promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa” é punível com pena de reclusão de três a oito anos e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
Da definição trazida pela Lei 12.850/13, surge uma série de críticas, que vão desde as nuances envolvendo o uso do termo “organização criminosa”, uma vez que a Convenção de Palermo, principal instrumento global de enfrentamento ao crime organizado transnacional e incorporada ao direito positivo brasileiro por meio do Decreto nº 5.015/2004, utiliza “grupo criminoso organizado”; até o questionamento quanto à necessidade de existência desse tipo penal autônomo, tendo em vista que o conteúdo de seu injusto não seria diferente do já existente crime de associação criminosa (artigo 288 do Código Penal). No Código Penal Português, por exemplo, os grupos, organizações e associações criminosas são tratados de forma indistinta
Em nosso ordenamento, verifica-se que um dos principais problemas na caracterização das chamadas organizações criminosas está relacionado à interpretação e, sobretudo, à comprovação de um elemento central na definição consignada na Lei nº 12.850/2013: a efetiva associação entre os seus membros.
Apesar dos requisitos legais estabelecidos e consolidados pela doutrina para a conformação de uma Orcrim, como a divisão de tarefas; a obtenção de vantagem de qualquer natureza mediante a prática de infrações penais; a permanência e a estabilidade da organização, a prova da existência do componente associativo tem sido reiteradamente tratada de modo superficial em casos submetidos à apreciação do Poder Judiciário, o que evidencia a ineficiência do nosso sistema de justiça em definir exatamente o que é essa complexa figura associativa.
A mera discriminação de núcleos, supostamente autônomos (v.g. financeiro, administrativo, político, operacional etc.), no corpo da denúncia, por si só, não atende aos fins legais e constitucionais da norma. A associação, o agrupamento de pessoas para um interesse comum, exige a existência de um animus associativo, muito bem caracterizado por uma vontade de se associar de modo permanente à prática de um crime visado. Esse elemento é fundamental para diferenciar a organização criminosa do mero concurso de pessoas, no qual a convergência de vontades para a prática delituosa é ocasional.
A necessidade desse animus associativo ou, em outros termos, de uma affectio criminis societatis (conceito adaptado do direito empresarial), já foi inclusive declarada pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo do voto proferido pela ministra Rosa Weber no julgamento da APn 470, cujo fundamento normativo, mutatis mutandis, aplica-se ao crime de organização criminosa aqui discutido, veja-se:
“Não basta, enfatizo, para a configuração deste delito, que mais de três pessoas, unidas, ainda que por tempo expressivo, pratiquem delitos. É necessário mais. É necessário que esta união se faça para a específica prática de crimes, conforme o eminente Ministro Teori Zavaschi acabou de ressaltar. Em outras palavras, a lei exige, na minha concepção, que a affectio societatis, que informa a reunião dessas pessoas, seja qualificada pela intenção específica de cometer crimes”.
No mesmo sentido, posicionou-se a ministra Maria Thereza de Assis Moura, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC nº 76.098-MG:
“A denúncia pelo crime de quadrilha ou bando, por envolver delito de perigo, exige do acusador redobrado cuidado para que não malogre na inépcia. Não se desincumbiu da tarefa de identificar o animus associativo, a estabilidade e a permanência que devem pautar o delito do art. 288 do Código Penal”.
Entretanto, a exigência indicada pela doutrina e reconhecida pelos tribunais superiores não tem sido suficiente para refrear a distorção que muitas vezes se faz em torno do conceito de organização criminosa, que acaba sendo utilizado para criminalizar relações das mais variadas ordens, sem que seja efetivamente demonstrado o viés estritamente criminoso da organização. Assim, não raro, vínculos político-partidários, negociais, trabalhistas ou mesmo familiares são tratados como evidências da existência de um Orcrim — aproveitando-se, muitas vezes, da estrutura hierárquica e ordenada pré-existente em algumas dessas relações —, sem que sejam criteriosamente apresentados elementos suficientes que comprovem o animus associativo entre os envolvidos ou mesmo a materialidade dos crimes praticados.
Nesse cenário, é difícil compreender como estruturas tão complexas acabam sendo alvo de investigação e dos meios de obtenção de prova previstos na Lei nº 12.850/2013, além de medidas coercitivas bastante evasivas, como prisões preventivas, medidas cautelares pessoais e patrimoniais, sem que antes estejam muito bem definidos os seus elementos caracterizadores. O que parece de fato ocorrer é, muitas vezes, a criminalização de ações lícitas ou, ao menos, não comprovadamente ilícitas, em nome de um amplo e irrestrito discurso de combate à corrupção, bandeira esta importante e necessária ao nosso regime democrático, mas que não pode vir desacompanhada do mais rigoroso respeito aos direitos e garantias fundamentais.
Por isso, é de extrema importância o atendimento a standarts bem definidos na hora de aferir a existência de uma organização criminosa, sob pena de banalização do conceito estabelecido pela norma penal incriminadora. Entre os critérios já estabelecidos em lei e reconhecidos pela doutrina, acrescentamos três pontos que podem ser observados pelo julgador na hora de concluir pela existência ou não da estrutura associativa prevista na Lei 12.850/13:
1) Plena demonstração do animus associativo entre quatro ou mais pessoas, com fins criminosos, o que não se confunde com relações trabalhistas, negociais ou partidárias, com fins lícitos. Caso se considere que a estrutura da relação lícita tenha sido utilizada para a prática de delitos, deve-se demonstrar em que momento aquela estrutura deixou de ser lícita e passou a buscar fins ilícitos; ou seja, é preciso delimitar em que circunstâncias de tempo, modo e lugar surgiu a affectio criminis societatis;
2) Divisão ordenada de tarefas com objetivos previamente ajustados (não bastam meras descrições de atividades laborativas anteriormente desempenhadas) em torno dos crimes almejados pela organização, que devem possuir, por determinação legal, caráter transnacional ou que sejam punidos com pena máxima superior a quatro anos, circunstância esta que deve ser previamente demonstrada e perquirida;
3) Direcionamento da atividade criminosa a um objetivo mútuo, perseguido igualmente por todos os membros da organização, sem o qual não seria possível estabelecer a relação de permanência entre eles. Em outros termos, o pressuposto básico para caracterização de uma organização criminosa deve ser a comprovação de um ajuste criminoso com fins declaradamente ilícitos entre os seus membros e não meras conjecturas sobre relações políticas, empregatícias ou empresariais.
A adoção desses critérios pode trazer maior conforto ao julgador e, certamente, trará maior segurança jurídica ao tema, especialmente para que não sejam alargados conceitos jurídicos penalizadores em detrimento do acusado, quando se sabe que a regra deve ser a liberdade, a presunção de inocência e não a culpa.